19.10.09

Meu amor,
vou perfurar seus olhos com pimenta
e devagar colocar as sementes
em cada gota de suas lágrimas

Quero encher os seus ouvidos de sal
de pedras grossas e translúcidas,
vou caramelizar seus dedos
eu vou come-los com molho rosé

Os seus cabelos, tão pretos
mergulharei em iogurte branco
besuntarei a sua testa de champanhe
e o resto do seu corpo de licor.

Um cacho de uva vai coroar a sua barriga
aveia e mel cobrirão seu corpo
ovos de codorna tamparão
os seus furos mais longínquos

Na boca, compota de tangerina
e gelatina de morango
daquelas molinhas pra você engolir,
aos poucos

Os ramos de sálvia e alecrim
eu vou atar nos seus pulsos
junto com dentes de alho e
fatias de limão.

Enrolando seu corpo eu vou
usar folhas de agrião e de rúcula
e a mostarda, amarela, vai ser
usada no final.

As cerejas marrasquino ficarão
espetadas nos dedos dos pés

Os louros fecharão o botão da camisa
e os pistaches a sua calça

E assim vou te comer
como sempre quis.

CAP 02

Tive uma infância normal, nunca fiquei horas numa cozinha com a minha avó, nem fui uma criança lá muito interessada em cozinhar, porém, sempre gostei de comer e sempre achei interessante como a comida muda de aspecto, de cor e de cheiro a medida que se circula pelo mundo em diferentes grupo sociais. Sempre quis comer a comida da empregada, tão mais simples e mais salgada. Dormir na casa das minhas amigas significava comer o que a mãe delas cozinhava. Às vezes era bom, às vezes ruim, mas nunca recusei um prato de comida.

Lembro-me bem das férias de julho que passava sempre na fazenda de meu avô materno, em Quirinópolis. De manhã cedinho eu e minha prima acordávamos e corríamos para o curral para tirar o leira da teta das vacas. Tem muita gente que não gosta de leite direto da vaca, o sabor forte e gorduroso a aparência densa, um cheiro molhado. Do leite, além de beber, na fazenda se fazia também os queijos, tanto a ricota quanto o curado e o doce de leite, encorpado, cheio de pedrinhas de açúcar por dentro.

Depois de passarmos a manhã andando à cavalo pelos pastos, burlávamos o almoço na sede e íamos direto comer na casa dos peões. Lembro da casa onde se preparava a comida deles, no fundo da casa tinha uma espécie de casinha de madeira, lá era produzido o sabão com a ossada dos bois abatidos, cheiro de carniça, de couro, de ácido pra fazer sabão. O tacho de cobre fervendo aquela mistura que no fim se transformava em barras de sabão próprias para lavar roupas, louça e outras coisas. A gordura que sobrava dos abates tanto dos bois quanto dos porcos era separada em uma lata grande de óleo de milho e colocada ao lado do forno a lenha. Era nessa gordura que se preparava a “bóia”. A comida sempre muito simples e engordurada e sustanciosa dava energia para os peões continuarem seus fazeres no pasto. A marmita montada constituía de uma camada grossa de arroz, uma colher funda de feijão, carne de panela, ovo frito. Se quisesse salada, era só se servir, um punhado de alface e cenoura ralada regada com óleo de milho e sal.

A gente buscava a nossa marmita, voltava para a sede e com um copo de leite grande sentávamos na varanda pra comer o nosso rancho. Sustância pouca era bobagem. De tarde ou de manhã a cozinheira dos peões nos preparava pão de queijo e biscoito de polvilho, conhecido também como peta. Na bandeja, ela aplicava com um saco confeiteiro os aros de biscoito a serem assados e sempre escrevia as letras do nossos nomes. Eu e Talita brigávamos para conseguir comer a maior quantidade de biscoitos com nossas letras. Os dias eram longos e não faltava tempo para importunarmos a cozinheira da sede que prepara com paciência de chinês os queijos. Primeiro se coalhava o queijo numas panelas grandes de metal, depois, enformados em formas especiais , ficava espremendo aquele soro branco até dar a consistência exata. Se quisesse ricota, desenformada logo, se quisesse queijo curado, deixava ele secando dentro de umas caixas com tela de mosquito verde.

Julho é época também do milho e a fazenda vizinha de meu avô tinha plantação . Os convites vinham logo cedo, uma visita à fazenda para comer as toneladas de pamonha e cural que produziam. A gente sempre chegava no começo da tarde pra comer as pamonhas frescas e ainda quentes que eram cozidas. Umas com lingüiça pimenta e queijo, outras doces só com queijo dentro. A gente voltava pra casa com sacos de pamonha para serem comidas durante a semana. Comíamos assadas, fritas, requentadas. O cural cremoso mantinha uma capinha seca por cima que era quebrada delicadamente com a colher, antes disso, uma pitada de canela por cima.

Tudo que é feito com o alimento fresco tem um sabor inigualável. É sempre mais suave, mais cremoso. É quase impossível explicar isso para quem nunca comeu uma pamonha cozida na hora, ou tomou leite direto da vaca. Acredito que sou privilegiada de poder ter experimentado tudo direto da terra, fazem anos que não vou à fazenda e que não como algo tão fresco como comida. Mesmo em Goiânia, que vivi durante alguns anos de minha vida e é a terra da pamonha, tudo parecia tão distante da sua forma original.

Ainda hoje me perco nessas lembranças que me são vagas, eu sei que poderia ir ainda mais a fundo e encontrar todas as sensações relacionadas, o cheiro da terra seca entrando no nariz, o cheiro do pasto seco, do esterco, os barulhos das pisadas das botinhas Zebu na estrada de terra batida. Porém aqui me atentarei somente em escrever as minhas memórias gastronômicas.